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20/11/2024 07h35
Consciência Negra: Mundo até quis fechar as portas, mas Vânia mudou tudo com a educação
Realidade no quilombo era subemprego, mas professora disse não e hoje atua para combater a desigualdade social
Por Idaicy Solano
A educação muda a realidade, porque a minha realidade passou a mudar através da educação”.
As palavras acima são de Vânia Lúcia Batista Duarte, militante do Movimento Negro de Mato Grosso do Sul e uma voz potente e atuante na discussão de políticas públicas e ações afirmativas para a promoção da igualdade racial no Estado. Descendente de Tia Eva, fundadora da maior comunidade quilombola de Mato Grosso do Sul, Vânia nasceu, cresceu e nunca saiu do quilombo.
Sua trajetória é marcada por uma realidade em que crianças precisavam abrir mão dos estudos para trabalhar, e em que subempregos e trabalhos braçais pareciam ser a única porta que o mundo estava disposto a abrir para a população negra da época.
Mas Vânia conseguiu mudar o percurso e transformar sua vida por meio da educação, abrindo portas para que aqueles que vieram depois dela, ou lutaram ao seu lado, pudessem conquistar um futuro diferente.
Vânia conta que crescer no quilombo lhe proporcionou uma certa “proteção” do mundo exterior, afinal, havia passado pelo menos os primeiros 20 anos de sua vida cercada por sua família. A primeira vez que enfrentou o racismo foi justamente no mercado de trabalho.
“Eu vivia aqui de uma maneira muito agradável e com o acolhimento da minha família. Mas, depois que eu fui conhecer outro mundo, foi quando enfrentei o racismo, principalmente no mercado de trabalho. Fiquei muitos anos como empregada doméstica, mas não foi porque eu quis, foi porque essa foi a porta que me abriram. E, mesmo quando volto como professora, começo dentro de casa, começo na comunidade”, expressa.
Transformação através da educação
Parte da trajetória de Vânia é marcada por ações afirmativas dentro da comunidade, que lhe proporcionaram, com muito esforço, a conquista de um currículo acadêmico amplo. Como sua família não tinha condições de bancar os estudos, ela se apoiou em todo tipo de projeto social que pôde para seguir avançando.
O primeiro aconteceu durante a pré-adolescência, época em que ela confessa ainda não entender o peso e o valor da educação para o seu futuro. Ainda no ensino básico, participou de um projeto social da professora Raimunda Luzia de Brito, uma das precursoras do Movimento Negro de Mato Grosso do Sul, voltado ao incentivo e auxílio aos estudos das crianças e adolescentes da comunidade. Foi ali que, pela primeira vez, Vânia ouviu que havia outro destino além de subempregos e trabalhos braçais, que eram a realidade no quilombo.
“Esse projeto contribuiu muito com as pessoas da minha geração para esse despertar para a vida acadêmica. Não que a gente não estudava, mas nós viemos de uma família com a condição econômica baixa, a nossa prioridade sempre foi o trabalho. Chegava na adolescência, a maioria de nós íamos trabalhar e muitas vezes deixávamos de estudar. E comigo não foi diferente, a partir dos meus 13 anos, a minha mãe me colocou pra trabalhar de doméstica”, relata.
Mesmo trabalhando como empregada doméstica, Vânia conta que conseguiu concluir o ensino médio aos 19 anos, mesma época em que deu à luz ao primeiro filho. Se concluir o ensino médio já havia sido uma batalha, Vânia ainda enfrentaria um desafio ainda maior: a graduação.
Ela tentou uma vaga na universidade pública, mas, sem sucesso, voltou a ter contato com a professora Raimunda, que lhe orientou sobre uma bolsa social oferecida pela UCDB (Universidade Católica Dom Bosco). Com a ajuda da professora, Vânia conseguiu conquistar a vaga e começou a estudar História.
Vânia compartilha que, na época, recebia um salário mínimo pelo serviço doméstico e que o valor do curso de História era superior ao seu salário. Ela chegou a ser mandada embora do emprego porque a patroa achou um absurdo ela precisar se ausentar aos sábados para frequentar as aulas. “Ela falou que assim eu não serviria para o emprego.”
Sem emprego e com a família ajudando como podia, principalmente cuidando de seu filho para que ela frequentasse as aulas, a solução veio através de um edital da Fundação Ford para acesso e permanência de jovens negros na universidade.
Foi então que, junto a um grupo de jovens da comunidade e com o apoio do professor Edson Silva, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, e da professora Maria Lúcia, da UCDB, Vânia ajudou a escrever um projeto que venceu o edital.
O projeto, nomeado NegraEva, criou um cursinho popular de pré-vestibular no quilombo, coordenado por Vânia. Por meio do trabalho prestado à comunidade, ela e mais 20 jovens recebiam uma ajuda de custo da fundação para permanecerem na faculdade.
Vânia conseguiu se formar aos 30 anos e seu primeiro emprego como professora foi na Escola Estadual Antônio Delfino Pereira, dentro da comunidade Tia Eva. Lá, ela conta que trabalhou com o EJA e deu aulas para muitos parentes da mesma idade que ela, mas que não haviam conseguido concluir os estudos.
Atualmente, Vânia é formada em História e Pedagogia, possui especialização em Políticas Públicas, Gênero e Raça, e está cursando o mestrado.
Em seu currículo, já ocupou a posição de Conselheira Municipal dos Direitos do Negro, foi membro do Conselho Estadual dos Negros e, atualmente, representa a Subsecretaria de Políticas Públicas para a Promoção da Igualdade Racial.
Infância no quilombo
Nascida em 1975, Vânia relata que é da época em que a comunidade não tinha energia elétrica, água encanada ou esgoto, “regalias” que só foram chegar no local na década de 80. Sua mãe trabalhava como empregada doméstica, então passou a maior parte da infância e da adolescência na companhia da avó, dos primos e dos irmãos, que eram cuidados pela matriarca.
Sua avó não sabia ler nem escrever, então a renda vinha de trabalhos braçais. Como a comunidade era rural na época, a família plantava e colhia diversas coisas para vender fora da comunidade. Como Vânia era a mais velha dos irmãos, era a responsável por fazer as vendas.
“Eu tinha que levar ali mamão, laranja, nós pegávamos as latas desses doces que a minha avó fazia e ia levar para as amigas dela no centro da cidade para comercializar, enquanto minha avó ralava mamão, fazia doce de goiaba, lavava roupa para fora”, relembra.
Apesar disso, Vânia relata que a infância no quilombo foi muito rica daquilo que o dinheiro não compra: amizade e carinho da família.
“Eu venho de uma família coletiva, que é a família quilombola. Então, morando aqui, a minha infância foi muito rica no sentido de brincadeiras, de convivência com a família. A gente brincava muito com o que a gente tinha, que era uma brincadeira de roda, amarelinha, 5 Marias, corria pra cá, corria pra lá, subindo em árvores”, relembra.
Vânia se alegra ao relembrar infância cercada pela sua família no quilombo (Foto: Paulo Francis)
Militância
Hoje, símbolo de força no quilombo, Vânia conta que nem sempre a realidade foi essa. Apesar de não ter nascido com o “espírito revolucionário” de berço, ela declara que a militância surgiu quando compreendeu o que é ser uma mulher negra, quilombola e reconhecer que tinha o direito de ocupar qualquer lugar no mundo.
“Trabalhando como empregada doméstica, tive alguns momentos de indignação e percebi que poderia ocupar outros espaços. O trabalho doméstico, para mim, é muito digno; com ele, eu conseguia ajudar minha família e criar meu filho. Mas já entendia que poderia mais. E, para alcançar esse 'mais', também precisava correr atrás desse objetivo. Minha meta sempre foi ter uma vida melhor, poder contribuir com a minha família de uma forma mais digna e ter uma vida mais tranquila”, declara.
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