- mell280
16/11/2025 10h20
Justiça Restaurativa ganha força em julgamento inédito em Belo Horizonte, aponta advogado
Decisão reacende debate sobre como o Judiciário pode resolver conflitos familiares sem recorrer apenas à punição
Uma decisão recente do 2º Tribunal do Júri de Belo Horizonte reacendeu o debate sobre a aplicação da Justiça Restaurativa no sistema penal brasileiro. Em um caso inédito, uma mulher acusada de tentativa de homicídio contra o companheiro foi absolvida após a adoção de um plano de ação restaurativo, conduzido com apoio técnico e mais de dez encontros de mediação. O processo teve como base a resolução 225/2016 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que estabelece a Política Nacional de Justiça Restaurativa no Judiciário.
A acusada havia ferido o parceiro com uma garrafa, durante uma discussão provocada por ciúmes, após consumo de álcool. Presa e denunciada, ela teve a oportunidade de participar de um Círculo de Construção de Paz, acompanhado por equipes especializadas, com o objetivo de restaurar a relação e tratar as causas do conflito. O próprio Ministério Público de Minas Gerais (MP/MG) e o juízo entenderam que o caso reunia condições para a aplicação do método restaurativo, com participação voluntária das partes.
O plano restaurativo foi elaborado e implementado com base em princípios como diálogo, responsabilização e inclusão. A iniciativa teve como um dos protagonistas o juiz sumariante do 2º Tribunal do Júri, Roberto Oliveira Araújo Silva, que lidera projeto focado em conflitos familiares com potencial para resolução por meio de práticas restaurativas. O magistrado ressaltou que vínculos afetivos, mesmo marcados por episódios de violência, não devem ser ignorados pelo Judiciário.
Para o advogado Marco Túlio Elias Alves, Doutor em Direito, a decisão representa um ponto importante. “Trata-se de um exemplo concreto de como o Judiciário pode atuar de forma mais humanizada e eficaz, indo além da punição para promover a verdadeira pacificação social. A Justiça Restaurativa não significa impunidade, mas sim responsabilização consciente”, explicou.
Marco Túlio também destacou que a Justiça Restaurativa não é aplicável a qualquer caso, exigindo avaliação criteriosa e acompanhamento técnico. “A atuação responsável das equipes envolvidas e o consentimento das partes são essenciais. Quando bem conduzido, o processo restaurativo pode transformar realidades e evitar a reincidência”, disse o advogado.
Durante o julgamento, os jurados consideraram os resultados do plano de ação, destacando que ele conseguiu pacificar a relação entre os envolvidos e prevenir novos episódios de violência. A mulher, mãe de duas crianças pequenas, demonstrou arrependimento sendo apoiada pelo companheiro, que não desejava sua condenação.
O promotor de Justiça Luciano Sotero Santiago, responsável pela condução do caso, afirmou que a condenação, nesse contexto, causaria um impacto ainda maior à estrutura familiar. Segundo ele, a lógica tradicional do sistema penal nem sempre é a melhor resposta para conflitos complexos como esse.
O caso reforça a importância de ampliar a capacitação de profissionais do Judiciário em práticas restaurativas e abre espaço para a expansão de projetos semelhantes em outras comarcas. A experiência bem-sucedida em Belo Horizonte poderá servir de modelo para a adoção da Justiça Restaurativa como política pública efetiva no tratamento de crimes envolvendo relações interpessoais.
Justiça Restaurativa: quando o diálogo substitui a punição e transforma vidas
A Justiça Restaurativa tem ganhado espaço no Brasil como alternativa à lógica tradicional do “crime e castigo”. Em vez de aplicar penas automaticamente, esse modelo busca entender a raiz do conflito, promover o diálogo entre as partes e buscar soluções que reparem os danos causados. A ideia central é envolver não só o ofensor e a vítima, mas também suas famílias e a comunidade, em uma rede de responsabilidade mútua.
Não se trata de uma “passagem de pano” para crimes, mas de uma forma diferente de responsabilizar. O que muda é o foco: da punição para a reconstrução de vínculos e para o enfrentamento real das causas que levaram ao conflito. Com isso, há uma chance concreta de evitar que o problema se repita.
O professor Marco Túlio Elias Alves explica que esse modelo exige maturidade do sistema de Justiça. “Muitas vezes, o Judiciário opera como uma máquina que distribui penas. A Justiça Restaurativa propõe um olhar mais atento, mais humano, principalmente quando há relações familiares e crianças envolvidas. É preciso coragem institucional para implementar esse caminho”, afirmou.
No Brasil, a Justiça Restaurativa é prevista em normas como a resolução 225/2016 do CNJ, mas ainda enfrenta desafios para se consolidar. Falta estrutura, capacitação técnica e, muitas vezes, vontade política. Apesar disso, experiências locais como a de Belo Horizonte mostram ser possível alcançar bons resultados com o empenho de juízes, promotores, defensores e advogados.
Outro ponto importante é o papel das partes. O método só funciona se todos estiverem dispostos a participar e a dialogar com sinceridade. A participação é voluntária e precisa ser acompanhada por especialistas que saibam conduzir esse tipo de mediação.
Na prática, a Justiça Restaurativa pode ajudar a aliviar a sobrecarga do sistema penal, que muitas vezes lida com conflitos que poderiam ser resolvidos fora do cárcere. Além disso, esse tipo de abordagem pode gerar menos traumas e mais compreensão, especialmente em casos que envolvem pessoas próximas.
Apesar dos avanços, ainda há resistência em setores mais tradicionais do Direito, que enxergam a prática como leniência. Para o advogado, é justamente o contrário. “É muito mais fácil punir do que escutar. O caminho restaurativo exige coragem, escuta ativa e compromisso verdadeiro com a justiça”, defende.
Casos como o julgado em Belo Horizonte servem de alerta e inspiração: há outras formas de resolver conflitos. Basta que a Justiça esteja disposta a ouvir.
Justiça Restaurativa e a equidade de gênero: um dilema ainda em aberto
Embora a Constituição Federal determine, em seu artigo 5º, que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, na prática, a aplicação da Justiça Restaurativa ainda esbarra em barreiras quando a vítima de um crime é uma mulher — especialmente em casos que envolvem violência doméstica ou de gênero. A contradição levanta um debate delicado: seria a Justiça Restaurativa, em certos contextos, uma ferramenta de pacificação ou um risco de perpetuação da desigualdade?
Casos onde a mulher é vítima de agressões físicas ou psicológicas enfrentam mais resistência para o uso da prática restaurativa, justamente por envolver uma estrutura histórica de opressão e desigualdade. Especialistas alertam que, nesses cenários, o uso da Justiça Restaurativa pode acabar reforçando ciclos de violência, especialmente quando há pressão emocional ou dependência afetiva da vítima em relação ao agressor.
Marco Túlio reconhece a complexidade do tema. “A Justiça Restaurativa não pode ser usada como desculpa para suavizar crimes de gênero. Há uma linha tênue entre restaurar relações e normalizar comportamentos abusivos. É preciso cuidado redobrado na seleção dos casos”, afirma. Ele defende que a análise do contexto deve ser rigorosa e envolver profissionais capacitados, com conhecimento específico sobre violência contra a mulher.
O próprio CNJ, ao regulamentar a Justiça Restaurativa, recomenda atenção especial a situações que envolvam vulnerabilidades, como as de gênero. Ainda assim, a falta de uniformidade nos critérios de aplicação leva a decisões diferentes para casos semelhantes, gerando insegurança jurídica e risco de retrocesso.
Organizações de defesa dos direitos das mulheres também têm manifestado preocupação. Para muitas dessas entidades, a Justiça Restaurativa pode ser válida em alguns contextos, se houver plena autonomia da vítima, acompanhamento psicológico e garantia de que ela não será revitimizada no processo. Do contrário, o método pode se tornar uma ferramenta para “silenciar” denúncias em nome da conciliação.
Outro ponto crítico é a expectativa de que a mulher perdoe ou compreenda seu agressor. Essa cobrança, mesmo que implícita, pode reforçar o papel social historicamente atribuído a ela de manter a harmonia a qualquer custo — mesmo quando sua segurança ou saúde emocional está em jogo.
Na prática, a equidade de gênero na Justiça Restaurativa ainda é um desafio. A busca por uma justiça mais humana não pode ignorar as estruturas de poder que afetam homens e mulheres de forma diferente. Como afirma o advogado, “igualdade não significa tratar todos da mesma forma, mas sim considerar as diferenças para que todos tenham, de fato, acesso à justiça”.


