19/11/2025 10h55
Decisão do STJ põe em cheque palavra da mulher em casos de violência doméstica
Ministra Maria Marluce Caldas, relatora do caso, decidiu pela absolvição de um acusado, por falta de provas robustas, segundo ela, não apresentadas pela vítima
A decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), proferida no início de novembro, de absolver um acusado em ação de violência doméstica contra a mulher, ao entender que não foram apresentadas provas robustas e inequívocas para a condenação, pode comprometer o direito de todas as mulheres vítimas de violência doméstica. Com essa decisão, abre-se a jurisprudência para a perda de poder da palavra da vítima nos crimes envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher, conquistada na Lei Maria da Penha.
A advogada especialista em Direito Familiar e Presidente da Comissão Nacional de Pesquisa do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), Dra. Fernanda Las Casas, explica que nesse caso, a ministra relatora do caso, Maria Marluce Caldas, ao fazer o sopesamento de princípios, avaliando qual princípio deve prevalecer, atribuindo-lhe maior peso para que se possa tomar uma decisão, entendeu que o direito do homem à liberdade é o que sofre maior prejuízo.
"Então, a partir de agora, caso não haja provas robustas da violência doméstica, essa decisão pode ser usada em ações similares a essa, justificando que o direito à liberdade do homem sobrepõe a dignidade humana da mulher, pois ao diminuir a importância da fala da mulher retira dela a possibilidade de defender-se, afinal como a mulher vai obter prova robusta de uma violência moral ou psicológica? A ministra avaliou um direito individual sobre o direito coletivo, embora a lei seja focada na proteção individual da mulher, o combate à violência de gênero envolve o direito coletivo, e o Estado é responsável pela prevenção e punição desta violência, não se trata apenas de um problema familiar isolado. A lei foi elaborada como política protetiva das mulheres que morrem todos os dias, assim, quando uma mulher sofre violência doméstica, trata-se de um direito coletivo que deve ser protegido”, enfatiza Dra. Fernanda Las Casas.
Maioria dos casos de violência doméstica acontece dentro de casa
De acordo com o Relatório Anual Socioeconômico da Mulher (Raseam 2025) do Ministério das Mulheres, em 2023, 71,6% das notificações de violência contra mulheres ocorreram dentro de casa, geralmente, sem câmera para registro de imagens do crime e sem testemunhas, que também poderiam gerar provas. “Esperar provas robustas em uma situação de violência doméstica, em que normalmente a vítima está sozinha na sua casa, é a mesma coisa que dizer que nunca haverá punição para aquele homem ou que teremos que abrir mão da nossa privacidade, da nossa intimidade, instalar câmeras na nossa casa, instalar câmeras nos nossos óculos, ter gravação contínua nos celulares para que filmem 24 horas. É quase como culpar a vítima sobre um crime que lhe foi imputado”, exemplifica a professora.
E, mesmo com a Lei Maria da Penha, em vigor desde 2006, que define medidas protetivas, penalidades mais rigorosas para agressores e políticas públicas de prevenção e apoio às vítimas, o número de feminicídios vem aumentando anualmente, no Brasil. Em 2024, foram registrados 1.492 feminicídios no país, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, uma média de quatro por dia. O número é o maior desde 2015, quando esse crime foi tipificado. Também foram registradas 3.870, tentativas de feminicídios no mesmo ano. Segundo o documento, 121 mulheres, mesmo com medidas protetivas de urgência ativas contra seus agressores, foram mortas em 2023 e 2024. Mais de 100 mil registros de descumprimento de medidas foram notificados em 2024, um aumento de 10,8% em relação ao ano anterior. O número de denúncias e de registros de medidas protetivas não condiz com a realidade, já que muitas vítimas não fazem Boletins de Ocorrência. E essa decisão do STF, apesar de não impedir o registro nas delegacias, vai ser mais um motivo para a desistência da vítima em procurar ajuda.
“Essa decisão cala inúmeras vozes de mulheres que tentam todos os dias na delegacia da mulher e em outras tantas delegacias do país denunciar os seus algozes e acaba voltando para casa, porque o próprio delegado fala: ‘mas você não tem prova sobre isso, é melhor você voltar para casa’. E nem iniciam a investigação, nem sugerem a busca de um laudo psicológico, que já provaria o que essa mulher passou, além de, claro, laudos físicos. Eu vejo essa decisão do homem só ser condenado por violência doméstica com provas robustas um retrocesso aos direitos humanos da mulher, uma vez que a vítima é revitimizada milhares de vezes, porque a palavra dela sempre vale menos do que a ausência de provas intencionais feitas pelos homens. É a lei dos homens libertando homens”, enfatiza Dra, Fernanda Las Casas
Decisões anteriores consolidam presunção de vulnerabilidade
As decisões anteriores do STJ consolidam que o critério decisivo para a incidência da Lei Maria da Penha é a existência de relação de convivência familiar, íntima ou de afeto, e que a presunção de vulnerabilidade da mulher decorre dessa situação. Mas, em seu voto, a relatora do caso, Ministra Maria Marluce Caldas decidiu pela absolvição do acusado justificando que “não basta que a relação exista; é indispensável que os fatos sejam amparados por provas organizadas, tais como laudos, perícias, depoimentos consistentes e outros meios idôneos que corroborem a narrativa da vítima”.
Projeto de Lei: mais uma mordaça na boca das mulheres
Além da decisão do STJ favorável ao relatório de uma Ministra mulher de absolver um acusado de praticar violência doméstica, a deputada federal Julia Zanatta (PL-SC),também apresentou, recentemente, um Projeto de Lei (PL) que pretende criar uma pena de até oito anos de prisão para mulheres que fizerem denúncias falsas de violência doméstica contra homens que não cometeram qualquer agressão. O texto apresentado sugere alterações no artigo 18 da Lei Maria da Penha, que trata das medidas adotadas pelo juiz ao receber um pedido de proteção urgente. Pela proposta, o acusado deverá ser comunicado imediatamente após a denúncia e terá o prazo de sete dias para apresentar uma defesa por escrito. Depois disso, caberá ao magistrado reavaliar as medidas protetivas concedidas, levando em conta os elementos apresentados por ambas as partes.
Para a Dra. Fernanda Las Casas, essas ações demonstram que estamos vivendo em uma era de retrocesso social dos direitos da mulher. “Se esse PL for aprovado e sancionado, é mais uma mordaça colocada na boca das mulheres, que somando à jurisprudência criada pelo STJ, retira totalmente o poder da palavra da vítima em denúncias de violência doméstica. Temos muito a lamentar essa repercussão, porque ela viola inclusive o protocolo de gênero, que é um instrumento obrigatório a ser utilizado pelos tribunais, ao qual até a ministra deve se ater quando faz qualquer tipo de decisão em que a mulher está numa posição de vítima e uma posição de vulnerabilidade social”, finaliza Dra. Fernanda Las Casas.
Sobre a Dra. Fernanda Las Casas
Advogada e pesquisadora em Direito de Família e Sucessões. Doutora em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), Mestra em Função Social do Direito pela Faculdade Autônoma de Direito (FADISP) e Especialista em Direito de Família e Sucessões pela Escola Superior de Advocacia (ESA/SP).
Professora de Direito Civil, Digital, Bioética e Família nos Cursos de Pós-Graduação do EBRADI, da Universidade Estadual de Londrina - UEL, Curso Damásio e Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil.
Autora do livro “Família: mitos ancestrais e crise da maternidade”, da Editora Foco, fruto da sua tese de Doutorado pela USP.
É coautora em 18 livros, sendo coordenadora em 3 e organizadora em 1.
Presidente da Comissão Nacional de Pesquisa do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).



